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Keum Suk Gendry Kim: Em "Grama" a quadrinista não teme pôr o dedo na ferida

Por Duda I.


DISCLAIMER: Aviso de Conteúdo Sensível

Este material contém descrições e/ou discussões sobre violência, incluindo violência sexual e estupro, que podem ser perturbadoras ou desencadear lembranças dolorosas. A leitura é recomendada apenas para pessoas que se sintam preparadas para lidar com essas temáticas.

Se em algum momento você sentir desconforto, pare a leitura/visualização e, se possível, busque apoio.

Você pode contatar:

Central de Atendimento à Mulher – 180 (24h, ligação gratuita)

CVV – 188 (apoio emocional e prevenção ao suicídio, 24h, ligação gratuita)

Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) em sua cidade.


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(Imagem: Divulgação)


Natural de Goheung na Coreia do Sul, Keum Suk Gendry Kim tem sido cada vez mais reconhecida como uma voz artística potente, ao trazer em seus quadrinhos temas considerados tabus em seu país. Aqui irei destrinchar especificamente sobre a obra Grama (2017).


Lançada no Brasil apenas em 2020 pela editora Pipoca e Nanquim, Grama foi um soco na boca do estômago, ao trazer a perspectiva de como são as infâncias atravessadas por guerras. Keum Suk se propõe abordar um delicado e estigmatizado assunto que é o caso das mulheres de conforto — um cruel eufemismo para prostituição forçada, no qual meninas e mulheres foram escravizadas sexualmente pelo Exército Imperial Japonês. É baseado na vida de Ok Sun Lee, uma das milhares de garotas que tiveram suas vidas roubadas pela violência brutal operada como arma de controle, em um contexto bélico e colonialista. Portanto, de antemão, farei uma breve ilustração histórica para melhor compreensão da graphic novel não somente como um produto literário, mas um registro histórico.


Após a Invasão da Manchúria, em 1931, e o Incidente de Xangai, em 1932, o Exército Imperial Japonês tomou como medida a criação de bordéis militares especiais a fim de conter “estupros em massa” e “preservar a moral das tropas”, além de controlar as doenças venéreas. Esse projeto se expandiu no período de 1937 à 1945, na Ásia ocupada: Coreia, China, Tailândia, Taiwan, Filipinas, Indonésia, Birmânia, entre outros — motivado, especialmente, por um evento traumático, que é o Massacre de Nanquim, no qual após derrotar as forças chinesas, o Exército Japonês adentrou a cidade comprometido a iniciar uma campanha de terror.


Civis e prisioneiros de guerra foram seus alvos. Estima-se que entre 200 mil e 300 mil pessoas tenham sido assassinadas. Outra arma foi o estupro em massa, no qual cerca de 20 mil a 80 mil mulheres, crianças e idosas tenham sido violentadas. A jornalista Iris Chang, em seu livro O Estupro de Nanking: o Holocausto esquecido da Segunda Guerra Mundial (2016), defende que a violência sexual não pode ser resumida à mero impulso, mas um dispositivo “metódico e sistemático”, pois ali se retira a dignidade do outro, sua humanidade, o subjuga. Ressalta ainda que este massacre é um dos piores crimes de guerra do século XX, comparável tanto em escala quanto truculência a outros genocídios modernos.


Enfim, em Grama, somos levados à infância de Ok Sun Lee na década de 1930, em uma Busan completamente rural. A pobreza extrema vivida pela menina e sua família não diminui em nada sua personalidade alegre, curiosa e ávida por estudo — ainda que isso não fosse possível. Seus pais, sem conseguir alimentar todos os filhos, optam doar Ok Sun para uma outra família criar e dar uma condição melhor de vida para a mesma. A ruptura do núcleo familiar já é a primeira violência sofrida pela menina. Já mais velha, a família que a adota, vende Ok Sun para ela trabalhar em um restaurante. Aos 15 anos, em um dia que voltava de uma de suas tarefas, a jovem é sequestrada por soldados japoneses e levada a uma espécie de campo de concentração, no qual viviam em cárcere privado as mulheres de conforto. Junto à outras meninas e mulheres nas mesmas condições precárias de alimentação e higiene, tudo que podia fazer era esperar as centenas de abusos diários que eram expostas. Não se engane pelos traços belos e sensíveis, esta HQ é a denúncia de um crime contra a humanidade.


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(Imagem: Pipoca e Nanquim)


Apesar da complexidade e densidade do tema, em nenhum momento há cenas explícitas e talvez por isso seja tão poderoso. Keum Seuk pondera o que aparece e nos faz imaginar o que está oculto: e, sendo honesta, isso tem um efeito devastador. Naquelas páginas, sob o espectro da morte que a rondava dia após dia e confinada em grades, Ok Sun cresce.


A grande metáfora trazida pela autora é que aquelas mulheres se assemelham a grama. Apesar de pisoteadas, se erguem dia pós dia, numa resiliência impressionante. Pois a vida não foi dura apenas nos anos em que estiveram no cativeiro, visto que após a libertação e fim do Exército Imperial Japonês elas foram abandonadas institucionalmente, relegadas ao estigma de terem “servido” sexualmente aos soldados japoneses, consideradas párias da sociedade e traidoras, até. Apenas na década de 90, a questão das mulheres de conforto foi considerada um crime de guerra, estimulando o debate acerca dos direitos femininos. Em 2015, o Japão pediu desculpas à Coreia e através de um acordo criou um fundo de reparo para as sobreviventes.


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(Imagem: Estátua da Paz, em Seul, que foi construída em frente a Embaixada Japonesa. Mesmo após muitos pedidos do Japão, ela jamais foi retirada. Na realidade, se espalhou: existe outra em Berlim, na Alemanha, e várias nos Estados Unidos)


A arte de Keum Suk, em meio a um relato devastador, não abre mão de um toque de beleza e esperança. Não poupa acerca da crueldade e, no entanto, não abre mão de reconhecer estas mulheres como sujeitos que tiveram seus direitos e liberdade furtados, e não podem ser resumidas a sobreviventes ou vítimas: elas são pessoas com uma história anterior ao trauma, as quais, infelizmente, a sociedade operou a violência simbólica de não acolhê-las.


“O solo, por muito tempo adormecido, vai despertar, e a pequena grama vai se reerguer em meio às folhas secas, queimadas pelo frio. Mesmo derrubada pelo vento e pisoteada por muitos, a grama sempre se reergue. Pode ser que ela te cumprimente de forma tímida, passando de raspão pelas suas pernas.” (Gendry Kim, P. 477)

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(Imagem: Ok Sun Lee em pele e osso e muitas histórias junto de Keum Suk Gendry Kim)


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