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Round 6 e a liberdade e a igualdade na democracia do sistema capitalista

por Thainá M.


O capitalismo é um sistema de infinitas possibilidades, certo? Independente de nossa origem étnico-racial, geográfica, de gênero ou de classe, sempre haverá inúmeras maneiras de prosperar e vencer na vida, não é? Podemos até mesmo contar com a sorte — concretizada nas loterias e demais jogos de apostas online ou offline, legais ou ilegais —, ganhar uma quantidade absurda de dinheiro e mudar de vida para sempre, correto?


Ao menos é isso que querem nos fazer acreditar.


Cena da temporada 2 de Round 6 em que Salesman oferece pães ou raspadinhas a moradores de rua.
(Imagem: Netflix/Round 6 — Temporada 2)

O mais proeminente teórico do capitalismo, Karl Marx, definiu-o como um sistema cuja existência é sustentada a partir da presença de duas classes antagônicas — classe trabalhadora e classe capitalista —, porém interdependentes — pois necessitam uma da outra para coexistir —, criando uma das contradições mais profundas de nossa história como humanidade. Para diminuir essa contradição em aparência, o capitalismo se organizou sob as bandeiras da liberdade e da igualdade, que têm se sustentado assim desde as revoluções burguesas do século XVIII — como as Revoluções Francesa e Americana — e a partir de mudanças nas relações jurídico-sociais declarou que todos os homens são livres e iguais perante a lei, sem quaisquer privilégios de classe ou de qualquer outra natureza.


Karl Marx percebeu, porém, que a liberdade da classe trabalhadora no meio de produção capitalista é dúbia e, pretend to be shocked, contraditória. O homem que vive sob o capitalismo é dono e proprietário de si mesmo, portanto, livre. Porém, não é proprietário nem dono do aparato necessário para produzir sua subsistência — não é dono dos meios de produção. Tal condição o obriga a vender sua força de trabalho ou morrer de fome.


Parece uma escolha sob condições de igualdade?


Em O Capital, sua obra máxima de análise do capitalismo, Karl Marx apresenta uma narrativa que expõe a relação desses homens “iguais”:


"Aquele que antes era o dono do dinheiro sai na frente como capitalista; aquele que detém a força de trabalho segue sendo seu trabalhador. Um sorri arrogantemente e está decidido a fazer negócios; o outro é tímido e retraído, como quem levou sua própria pele para o mercado e agora nada mais tem a esperar senão… Ser esfolado."

Cena em que Ali vai ao escritório de seu chefe cobrar seus salários atrasados.
(Imagem: Netflix/Round 6 — Temporada 1)

Toda essa relação de contradição e exploração, porém, não é exatamente uma novidade. Mas o que faz com que ela seja tão normalizada a ponto de ser aceitável? A questão nos leva ao início e às infinitas possibilidades de ascensão através do capital. Todos nós já fomos apresentados a exemplos de superação de condições hostis que culminaram em prosperidade, riqueza e conforto e que trazem um alerta oculto: o próximo pode ser você.


Vivendo sob realidades adversas, nas margens do sucesso do capitalismo, muitas pessoas fariam qualquer coisa para superar suas condições desfavoráveis, cruéis e humilhantes. É nesse terreno fértil de luta pela sobrevivência que o drama de sucesso global Round 6 se assentou.


A série sul-coreana, devido ao estrondoso sucesso, dispensa apresentações, tampouco é o objetivo fazer aqui uma review da trama ou de seus personagens, menos ainda de discutir sua qualidade enquanto entretenimento audiovisual. O fato é que Round 6 só existe porque seus criadores a desenvolveram a partir da realidade latente do capitalismo atual, o que foi capaz de produzir reflexões aqui desenvolvidas e identificar relações importantes em nosso sistema econômico que aqui estão descritas.


Segundo o relatório da OXFAM, Desigualdade S.A. (2024), desde 2020 — período em que o mundo sofreu com a pandemia de Covid-19 — “os cinco homens mais ricos do mundo viram suas fortunas mais do que duplicar, enquanto quase cinco bilhões de pessoas viram seu patrimônio diminuir”.


O dado que gostaria de destacar, porém, é o que diz que “se cada um dos cinco homens mais ricos gastasse um milhão de dólares por dia, eles levariam 476 anos para esgotar toda sua fortuna combinada” (grifo nosso). Chocante, não?


A maioria da população mundial não vive em relação de igualdade com essas pessoas — nem civilmente (não são consideradas cidadãs de mesma categoria), muito menos juridicamente (é só observarmos a classe da maioria esmagadora das pessoas encarceradas ao redor do mundo) —, especialmente porque essas fortunas bilionárias não são frutos puramente de trabalho e sim de exploração em suas inúmeras formas, afinal, “levaria 1.200 anos para uma trabalhadora de setores de saúde ganhar o que um CEO de uma das 100 maiores empresas da lista da Fortune ganha em média por ano”, segundo o mesmo relatório da OXFAM.


É esse cenário real que permitiu a criação da trama de Round 6.


A realidade da grande massa ainda é a condição de subalternidade, em diferentes níveis, e está concretizada em dívidas impossíveis de quitar, falta de moradia e prisão ao aluguel diante da especulação imobiliária nos grandes centros urbanos, desigualdade de gênero, precarização das condições de trabalho, salários achatados, alto custo de vida, superexploração do trabalho migrante, por vezes em condições análogas à escravidão, para citar alguns exemplos. Todas essas variáveis, quando atravessam a vida de pessoas reais, criam cenários de violência, crime, pobreza, riscos à saúde, entre outras dificuldades que tornam a vida uma verdadeira guerra pela sobrevivência.


O cenário que cria os candidatos perfeitos aos jogos de vida ou morte de Round 6 não está restrito à ficção, muito pelo contrário, por ser tão real, possibilita a alegoria da trama que se desenvolve em jogos que colocam todos em situação de rivalidade pelo prêmio em dinheiro que mudará suas vidas. Os jogadores são levados ao limite, o que aflora a individualidade conforme os jogos avançam e o número de concorrentes diminui. Esta, inclusive, é mais uma das situações reais hiperbolizada pelo drama, afinal, não existe nada mais característico do capitalismo moderno, em sua faceta neoliberal, do que o individualismo exacerbado, que tenta impedir a grande massa de se organizar contra suas opressões.


GIF de cena de confronto entre jogadores e guardas na temporada 2.
(Imagem: Netflix/Round 6 — Temporada 2)

Ao assistir Round 6 — que teve sua temporada final estreando pela Netflix em 27 de Junho — foi impossível não identificar todos esses elementos do sistema capitalista escancarados nas relações dos personagens. Apesar da exorbitância da ficção, responsável por nos capturar como espectadores, os personagens ali representados não estão tão longe assim da realidade. O protagonista Seong Gi Hun (Lee Jung Jae), por exemplo, era um trabalhador fabril que foi demitido após uma crise financeira da empresa, perdeu um companheiro para a violência policial enquanto lutavam juntos pelos seus direitos trabalhistas e nunca mais conseguiu se reerguer. Nada inédito, não é mesmo?


Apesar da realidade difícil, ainda existiam inúmeras possibilidades para todos aqueles personagens, é o que o nosso sistema nos leva a crer. A Coreia do Sul, cenário do drama, é um dos polos do capital, uma democracia que se ergueu após anos de ocupação e exploração, segundo consta a historiografia oficial, ou seja, um lugar com conjuntura favorável à abundância. Em uma oportunidade única e espetacular, porém, aquelas pessoas ganharam mais uma chance: vencer um jogo mortal, entreter milionários sádicos e recomeçar a vida.


Em inúmeras falas dos personagens que conduzem os jogos, a liberdade de escolher participar é frisada. Nenhum deles foi obrigado a participar dos jogos, nenhum deles foi obrigado a tirar a vida de seus oponentes e em processos democráticos de votos, todos poderiam escolher juntos se queriam continuar ou desistir.


No entanto, qual liberdade de escolha existe para quem vive sob um sistema perverso que limita suas chances de sobrevivência digna?


Existe liberdade diante da necessidade extrema? Da fome? Do medo? Do desespero?


Os organizadores dos jogos sabiam muito bem as respostas para esses questionamentos. A liberdade dos jogadores estava limitada a aceitar o risco da morte por uma oportunidade incerta ou permanecer em suas realidades de desigualdade, discriminação e violência. É por isso que não existia aleatoriedade entre os que recebiam o cartão de visitas do Salesman (Gong Yoo), porque suas condições de vida eram sempre requisitos básicos de participação, na certeza de que iriam até o fim para encerrar o ciclo de miséria presente em suas vidas. Mais do que isso, os organizadores acreditavam na desumanização dos jogadores no interior daquele ambiente controlado para exprimir de todos o extremo da barbárie.


Imagem da filha da personagem Jun Hee, jogadora 222, sendo alimentada por um guarda antes do jogo final.
(Imagem: Netflix/Round 6/Temporada 3)

Barbárie essa que encontrou seu auge, em minha opinião, na terceira e última temporada, quando uma recém-nascida foi admitida como jogadora após a morte de sua mãe durante os jogos. Nada mais característico do capitalismo do que a herança da condição de nossos pais. Se seus pais são milionários, ainda que a fortuna não lhe pertença — ainda —, você já nascerá sob os privilégios dela e usufruirá da mesma. Se for filho da classe trabalhadora, a condição de seus pais impactará imediatamente o seu desenvolvimento e as suas possibilidades futuras até mesmo antes de nascer.


Que liberdade de escolha teve a jogadora 222, Kim Jun Hee (Jo Yu Ri)? A liberdade de escolher entre morrer sozinha ou com a filha nos braços.


A trajetória dessa personagem e de sua filha são um exemplo de como funciona a liberdade para algumas pessoas sob o capitalismo. Você tem o direito de decidir sobre sua vida, mas entre possibilidades extremamente limitadas e sob inúmeras formas de opressão.


Ainda assim, dirão alguns, é melhor essa liberdade do que nenhuma, não é?


Porém, melhor para quem?


A configuração das democracias no capitalismo está sujeita a complexos jogos de interesse e poder, onde a igualdade existe em direito, mas não de fato e a liberdade está diluída em sistemas de opressão e isso não mudará enquanto estivermos sob esse sistema, como mostra o drama em cena da segunda temporada, em que o Frontman (Lee Byung Hun) diz a Seong Gi Hun que “o jogo não vai acabar enquanto o mundo não mudar”.


“Não vai haver democracia enquanto houver uma disparidade absurda de poder e quem pode influir no jogo político”, é o que diz Rita Von Runty, porque isso contradiz a própria definição de democracia como um governo do povo. O que nos leva a concluir que as noções de liberdade e igualdade, tão presentes em Round 6 através dos organizadores dos jogos, estão completamente maculadas. E eles sabiam disso.


Cena dos VIPs observando o jogo final na temporada 3.
(Imagem: Netflix/Round 6 — Temporada 3)

A potência da obra de Hwang Donghyuk — diretor e roteirista do drama — está em possibilitar ao espectador, através da alegoria de Round 6, uma visão metaforizada do abismo que separa os ricos da classe trabalhadora. Esse abismo, produzido pelo capitalismo, gera visões deturpadas de um em relação ao outro. Na série, pessoas em situação de vulnerabilidade extrema são peças em um jogo sádico, comparadas a cavalos de corrida que servem ao divertimento ao mesmo tempo em que são esvaziadas de sua humanidade.


A suavidade da obra surge como antítese dessa visão, na permanência da cooperação, da solidariedade, da organização coletiva e do afeto entre alguns personagens — os que se tornaram nossos favoritos —, mesmo em condições de extrema brutalidade e em cenários manipulados para a violência e o embate.


No final da primeira temporada, Oh Il Nam (Oh Yeong Su), um dos idealizadores do jogo, pergunta ao protagonista Seong Gi Hun se ele ainda confia nas pessoas, depois de tudo que viveu. Apesar dele não responder, imaginei a resposta do personagem inúmeras vezes. Quando nossa humanidade persiste em situações em que parece impossível mantê-la, é que a crença no que nos faz humanos se torna maior. Não nos corrompemos no caminho por uma escolha individual, mas vivemos sob um sistema que nos força, todos os dias, para o limite da humanidade em direção à barbárie. São as pessoas ao nosso lado que nos puxam na direção contrária e é nelas que confiamos, ainda que a liberdade se apresente como uma falácia e que a igualdade não seja concreta.


Cena final do personagem Gi Hun, onde ele diz humanos não são cavalos.
(Imagem: Netflix/Round 6 — Temporada 3)

REFERÊNCIAS:


BURGIS, Ben. Marx estava certo: os trabalhadores são sempre explorados sob o capitalismo. Tradução de Bruno Murtinho. Disponível em: <https://jacobin.com.br/2022/07/marx-estava-certo-os-trabalhadores-sao-sempre-explorados-sob-o-capitalismo/>. Acesso em 28 de Jun de 2025.


MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Tradução de Régis Barbosa e Flávio R. Kothe. Vol. I, Tomo I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.


______. O Capital: Crítica da Economia Política Tradução de Régis Barbosa e Flávio R. Kothe. Vol. I, Tomo 2. São, Paulo: Abril Cultural, 1984.


OXFAM Brasil. Desigualdade S.A. Como o poder corporativo divide nosso mundo e a necessidade de uma nova era de ação pública. 2024. Disponível em: <https://www.oxfam.org.br/forum-economico-de-davos/desigualdade-s-a/>. Acesso em 28 de Jun de 2025.


VON RUNTY, Rita. O capitalismo é livre e democrático? Disponível em: <https://youtu.be/m6EOnOO_O_8?si=huROjpf6EhAxqcUd>. Acesso em 28 de Jun de 2025.

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